Pode fazer uma pesquisa informal: pergunte a dez amigos o que eles acham de uma boa história de horror. É bem provável que o grupo se divida. Alguns vão arregalar os olhos e abrir sorrisos empolgados, outros vão assumir uma expressão aflita. Mas dificilmente alguém vai se mostrar entediado. Algumas pessoas podem até não gostar do nosso amado gênero, mas acredito eu, ninguém consegui ficar indiferente a ele... graças a Deus, ou se preferirem, Cthulhu.
Não será por acaso. Da repulsa à paixão, os relatos que causam medo – mas um medo “seguro”, de algo que sabemos ser impossível de acontecer – mexem com os nossos nervos desde a noite dos tempos. E continuam mexendo. Basta olhar para as prateleiras de qualquer livraria — ou abrir a Netflix — para perceber que a ficção de horror está longe de se esgotar.
Na verdade, o que existe hoje é uma verdadeira tradição, com obras fundamentais e origens. Só que, para encontrá-las, precisamos retroceder alguns milhares de anos:
Histórias passadas adiante oralmente
Sabe aquela roda de acampamento em volta da fogueira? Então...
Sabe aquela roda de acampamento em volta da fogueira? Então...
Bem antes dos livros, veio a tradição oral. A partir do momento em que articulou um discurso minimamente compreensível, o homem assustou a si mesmo.
Largado à própria sorte em um mundo hostil, o nosso descendente primata já era curioso. Queria explicar todos os fenômenos que não compreendia. As tempestades, o fogo, os ataques de animais: um território imenso, então intocado pela ciência, inspirou as criações mais delirantes.
Sim, as lendas e os mitos primordiais que, ao redor da fogueira, eram sussurrados pelo ancião da tribo nos ouvidos dos mais jovens.
O Antigo Testamento: quimeras
e banhos de sangue
Os séculos passaram, o homem foi compreendendo seus arredores, mas o fascínio exercido por relatos sobrenaturais não diminuiu. Pelo contrário; esses relatos passaram a ocupar paredes de cavernas, manuscritos, pergaminhos e, enfim, as páginas de epopeias e documentos religiosos.
Basta dar uma espiadinha no Antigo Testamento (meados do século I) da Bíblia. Se você saliva pela ficção de horror, certamente vai se empanturrar com a quantidade de monstros e de sangue derramado pelo texto. Isto sem mencionar outros documentos religiosos da antiguidade, como o Avesta (a compilação de textos sagrados do Zoroastrismo, anos 3 a 7 d. C.), e épicos de cavalaria (séculos X a XV - as sagas do Rei Artur e de Beowulf são exemplos).
“O Castelo de Otranto”: o vovô gótico das histórias de horror
Até então, as passagens aterradoras nos livros tinham alguma finalidade específica: catequizar, propagar a fé, coisa e tal. Mas tudo muda a partir da segunda metade do século XVIII.
Em pleno iluminismo – ou seja, quando a ciência jogava luz na “Idade das Trevas” –, um autor optou por somente assombrar os leitores. Queria causar medo, e nada mais. Falamos do inglês Horace Walpole e de seu O Castelo de Otranto – Um Romance Gótico (1764), obra essa que merece uma matéria exclusiva aqui no blog em um futuro próximo.
A partir de então, nada foi como antes. Para escapar do racionalismo que varria a Europa, mais e mais escritores passaram a se refugiar no castelo medieval do gótico. Os também britânicos Ann Radcliffe (Os Mistérios de Udolpho), Matthew Gregory Lewis (O Monge) e Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes) são apenas alguns entre muitos nomes.
O Homem da Areia e um reforço de peso:
o inconsciente
Foi um alemão que inseriu, nos relatos sobrenaturais, um componente até hoje revolucionário: o psicológico. Falamos do autor, pintor, jurista e músico Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, ou E.T.A. Hoffmann.
Como todo grande escritor, Hoffmann foi visionário ao combinar tradição e modernidade. Seu conto O Homem da Areia, por exemplo: publicado em meados de 1816 (quase um século antes de Freud e da psicanálise), explora as regiões escuras da mente do protagonista, Natanael.
O que as cartas relatam é verdade ou delírio? Nathanael, o pobre protagonista, está louco ou é realmente acossado pela figura demoníaca do homem de areia? Abordando o conceito de “duplo” e explorando possíveis alucinações, Hoffmann estabelece novas diretrizes para as narrativas sinistras.
Os Contos do Arabesco e do Grotesco: Poe funda a ficção moderna de horror
Entre os especialistas, é consenso que ninguém tenha feito tanto pelas histórias de horror como o estadunidense Edgar Allan Poe. Para entender o porquê, basta conhecer os contos da antologia Tales of the Grotesque and the Arabesque (1840) -- no Brasil conhecida como as Histórias Extraordinárias. Em cada um dos relatos, Poe soube explorar com maestria aquele fascínio que o desconhecido sempre exerceu sobre nós.
Tem de tudo. A tradição gótica (marcante em relatos como A Queda da Casa de Usher, O Poço e o Pêndulo e Ligéia); as inovações “tecnológicas” da época (como a hipnose em Os Fatos no Caso do Senhor Valdemar), a crueldade (O Gato Preto e O Barril de Amontillado mostram o quão tenebrosos podemos ser) e, claro, o horror sobrenatural (em A Máscara da Morte Rubra e O Coração Delator, por exemplo).
Deixo abaixo a declamação de um de seus poemas que realizei em um dos vídeos do Mortalha Produções, a sua obra de maior sucesso, intitulada:
"O Corvo"
O fato é que Poe descobriu novos e poderosos jeitos de assustar sua própria tribo. Tanto é que frequentou – e frequenta – a cabeceira de dez entre dez dos grandes que vieram a seguir.
H. P. Lovecraft rumo às Montanhas da Loucura
Entre esses grandes, um gigante: o também estadunidense Howard Phillips Lovecraft. Leitor apaixonado de Poe, H.P. Lovecraft não só apreendeu artimanhas do conterrâneo como deu uma enorme contribuição para o gênero: a estética do horror cósmico.
Em linhas gerais (e bastante simplistas), a ideia é a seguinte: no tempo e no espaço, o homem é insignificante. É uma ilhota de ignorância banhada pelo mar do desconhecido. Ao redimensionar a humanidade diante do universo, Lovecraft a transforma em poeira, em material descartável à deriva no turbilhão do caos.
Para expressar essa estética, o autor concebeu um verdadeiro panteão de entidades inefáveis. São criaturas vindas “de fora do espaço e do tempo”, em torno das quais foram construídos poderosos relatos de horror. Como Nas Montanhas da Loucura (1936), O Caso de Charles Dexter Ward (1941) e O Chamado de Cthulhu (1928), sua obra mais famosa.
Com o tempo, Lovecraft foi se tornando outra unanimidade – desta vez, entre os próprios autores de horror. De Neil Gaiman a Clive Barker, de Jorge Luis Borges a Stephen King; todos, de uma forma ou de outra, pagaram e pagam tributo ao “cavalheiro de Providence” (cidade-natal do autor).
Os ecos de sua obra são ouvidos até hoje. Não só na literatura, mas no cinema (uma boa lista de filmes lovecraftianos é essa), nos seriados (a primeira temporada de True Detective, por exemplo) e no mundo dos games (RPGs, acima de tudo).
E, a julgar pelo sucesso atual da ficção de horror, tudo indica que Lovecraft continuará ecoando. Ao lado de Poe, Hoffmann, Walpole, Bram Stoker, Mary Shelley, Henry James, Murilo Rubião e incontáveis outros criadores que, imbuídos daquela urgência ancestral, inventaram o desconhecido.
Agora, quanto aos amigos que torcem o nariz para essas histórias: que tal convidá-los para uma bela roda de leitura? De preferência, à noite — e à luz da fogueira.
Embora exista uma distinção clássica entre “terror” e “horror” (o primeiro se referindo à antecipação de uma experiência medonha, e o segundo, ao que ocorre após essa experiência), optamos por qualificar as histórias que causam medo como sendo de “horror”. Isto porque preferimos a maior intensidade de sentimentos que o termo comunica.
Adaptado de: Galileu
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