A rosa da canção - Conto


Ele percebia a curva do vento, as ondas sonoras que se aproximavam feito dedos e lhe entravam pelos ouvidos. Largava o futebol quando a mãe queria; deixava o riacho, os galhos da árvore, o estilingue. A mãe podia estar distante, mas o vento trazia a voz dela, e a curva dos ares puxava as orelhas do menino.

Santiago não se lembra de ter ouvido alguma vez as palavras de sua mãe: apenas aqueles sons melodiosos, antes que ele caísse num sono irrecusável. Acontecia sempre assim: ela conseguia imobilizar o filho onde ele estivesse - o garoto dormia na escola, no parque, no cinema; depois, acordava em casa, deitado entre lençóis. A mesma canção hipnótica, acompanhou sua infância como um vício, e Santiago habituou-se aos pesadelos de cada sono. 


Os primeiros sonhos que recorda o levam à época dos seis anos, logo depois que o pai morreu. Durante a noite, a mãe cantava para o filho, e ele instantaneamente dormia. Sonhava caindo do alto de uma torre, enquanto aviõezinhos de papel cruzavam as nuvens, pouco antes de se transformarem em facas de pontas finas. Certa vez Santiago sonhou com um afogamento - a pelo do rosto pálido mal escondendo a intumescência das veias, as mãos com os dedos rotos, os pés virados em conchas. Ao redor, os peixes coalhavam as águas de uma paralisia prateada.

Sucederam-se os sonhos de morte, sempre com vítimas desconhecidas. Primeiro, o pombo azul esmagado por um carro em marcha a ré: o ruído dos ossinhos trincando, foi, talvez, uma nota em falso que a mãe soltou. Depois, a mulher que se matou no banheiro de um ônibus - Santiago pôde ver a gilete rasgando os pulsos; ele era uma câmera no teto, e a mulher fechou os olhos enquanto o sangue escorria. Os cabelos negros e vastos caíam sobre o rosto; ela estava sentada no sanitário, os punhos apoiados na miúda pia em frente. Demorou algum tempo até que seu corpo amolecesse: as mãos desabaram flácidas; e demorou mais tempo ainda até o sangue avançar pelo chão. Então chegaram homens para abrir a porta. Quando finalmente conseguiram quebrar as dobradiças, o ônibus já tinha estacionado, e o corpo da mulher parou de sacolejar.

Em muitas noites, Santiago despertava suando frio, aterrorizado com o fato de que seus pensamentos pudessem realmente acontecer. Nas vezes em que a mãe não cantava, ele conseguia dormir um sono calmo, limpo de tragédias. Logo o filho associou a canção aos pesadelos e pediu à mãe que não cantasse mais, poupasse-o daquela angústia. Foi a primeira vez em que a viu triste, de olhos baixos. O menino jamais lhe ouviria uma palavra; apenas aquelas notas musicais, que eram como um instrumento acionado para enfeitiçar as pessoas.

Alguns meses se passaram sem a música, e Santiago pôde levar uma vida normal. Certo dia, porém, atrasou no horário de voltar para casa; tinha ficado conversando no pátio da escola, imerso nos olhos de uma garota, e quase imergia em seus lábios, quando ouviu, longínqua, a melodia do sono. Em poucos minutos, sentiu-se desmaiar.

A adolescência começou suspensa pelo medo. Santiago acostumou-se a controlar os horários, aflito em pensar que poderia ouvir os sons distantes que o fariam adormecer onde estivesse. Não conseguia fazer amizades: jamais estava disponível para conversas, passeios ou pequenas viagens. As poucas namoradas que teve logo se afastaram, quando ele subitamente desmaiava de sono em seus braços. Mesmo quando levava a moça para casa, pensando que lá estaria resguardado, era inútil. Bastava a mãe distrair-se e, enquanto passava cantarolando pela sala, ele caía adormecido.

Teve muitos sonhos, desde então: poderia listá-los, se quisesse, e fazer com eles um livro. As histórias nasciam inteiras, como se um pequeno filme rodasse, a cada episódio mostrando novas cenas e personagens. Havia um garoto loiro, e desse Santiago se lembra bem, porque ao sonhar com ele pensou em si mesmo. Era um menino quase transparente de tão branco e frágil, e uma pequena multidão de aleijados o rodeava. Acreditavam que ele teria o poder de salvar os estropiados, retirá-los de uma região maldita, ameaçada por nuvens de peste. A criança avançava pela vastidão deserta, saindo do círculo de sombras que as nuvens criaram sobre a praia. Caminhou alguns metros e depois caiu. O sol era insuportável, cruel. Não demorou para que a fina areia cobrisse o corpo, apressada como o vento carregando música.

Depois, apareceu a velha que andava com as mãos, as pernas muito finas cruzadas, arrumadas em trapézio. Subia as escadas da igreja, enquanto as pessoas falavam. Havia prostitutas, pescadores, bêbados, e falavam de Vitorina. Assim se chamava a velha que todas manhãs subia sentada os degraus da igreja. Santiago via o mar que avançava cada vez mais - como se o sonho durasse vários meses. E aos poucos o mar engolia a cidade... até que um dia invadiu completamente as casas. O mar quebrou paredes, arrancou telhados, e na igreja Vitorina ansiava de emoção e espera. A água demorou para atingi-la, na cripta onde tinham enterrado o padre Bento. Então foi o êxtase, o que se viu nos olhos da pobre velha, quando a maré ultrapassou a porta.

A solidão em que Santiago vivia só era compensada pelas histórias. Não fossem elas tão angustiantes e trágicas, ele teria ficado o resto da vida sonhando. Mas sofria do terror de acordar banhado em suor, depois que a mente se banhara em sangue. Calada, a mãe sorria ao lado dele, e ele passou a odiar aquele sorriso, desesperar com aquela voz. Trincava os dentes, no esforço de apertar as mãos contra os ouvidos. Comprou protetores auriculares minúsculos, mas não adiantou. O barulho externo diminuía, porém a música parecia nascer de dentro do filho: o som repercutia em ondas espiraladas e quentes.

Foi um dos últimos sonhos que lhe trouxe a ideia. Um rapaz alto, moreno, aborrecia-se com as ordens do pai adotivo, tetraplégico. Noite cerrada, a mordaça prendeu os lábios frouxos do velho, e braços e pernas iam soltos, acorrentados pela própria paralisia. O jovem empurra a cadeira de rodas do pai; não vê as chamas dos olhos em pânico - apenas pressente o suor frio nas costas imóveis. Arrumou o corpo mole sobre os trilhos; logo o trem chegará. O rapaz pensa no velho, observando-o a distância. Santiago leu o pensamento do rapaz: a coluna vertebral era como uma linha férrea desativada, agora se partindo, com todos os seus ossinhos.

Quando Santiago acordou, ouviu um apito prolongado e contínuo. Era isso: amordaça-la, como a um cão raivoso. Prendê-la em pés e mãos, no antigo armário da cozinha. E  ali ela ficou, meio aturdida, observando o filho com seus olhos de mãe. Mas ele não se deixou comover. Saiu para a rua, achando que nunca tinha respirado com tanta facilidade. O ar parecia-lhe puro, benéfico. Mal avançara uma esquina, porém, divisou a onda de sons que chegava, espiralando-se da janela de sua casa. A mãe continuava cantando, mesmo com a mordaça. Cantava com a mente, talvez, e provavelmente ninguém ouviria aquela música, apenas o filho - os sons já o alcançavam, embora ele corresse como um desatinado.

Alguns quarteirões adiantes, Santiago parou, ofegando e vermelho de suor. Conseguira escapar do som. Arfava feito um bicho sedento, sentado no meio-fio. Abaixo de sua cabeça, percebeu os dois sapatos, sujos e velhos. Em seguida, viu as pedras do calçamento. Algumas formigas avançavam no passo multiplicado, pontilhando o chão. Aqui e acolá, tufos de capim cresciam entre as pedras - Santiago nunca tinha visto tantos. De repente, pareceu-lhe que ficara surdo, e percebia, reforçado, o sentido da visão. E se ficasse surdo? Era uma ideia. Podia ter experimentado um tiro de pistola próximo ao ouvido: o tímpano destroçado. Mas agora a mãe estava presa e muito longe; a música não o alcançava. Não fora preciso ensurdecer. Mas e se mesmo assim tivesse perdido a audição?

Santiago percebeu seu engano ao escutar o barulho de um tambor ou algo que assim lhe pareceu ser. Não se alarmou, pois aquilo era diferente da voz da mãe; não vinha para adormecê-lo. O ruído ficou mais próximo, até que se confundiu com duas botas, que pararam em frente aos sapatos de Santiago. Aos poucos, o rapaz foi levantando a vista, passando pela calça azul, pela camisa de botões dourados e gola tesa, antes de chegar ao rosto sério do guarda.

Naquela noite, o sonho de Santiago aconteceu sem música. Lentamente, ele se acomodou no chão frio de cimento e imaginou que estava sobre uma superfície líquida. As grades ganharam vidros como num aquário, depois se abriram em águas, e surgiu o mar, então. Um homem oscilava, submerso. Os peixes nadavam ao seu redor, de vez em quando beliscando um pouco de sua carne ou roupa. Santiago aproximou-se para ver o rosto do homem, e algo lhe disse que aquele era seu pai, embora não chegasse a distinguir nenhuma feição na cabeça neutra do afogado. Mas o mar progressivamente afastou-se, e o homem não mais oscilava, porém dormia, calmo, sobre uma cama. A mãe estava ao lado, e seus olhos pareciam machucados de lágrima. Estendeu os dedos para o menino de pouca idade: o pai tinha morrido. O coração explodira como uma rosa. A mãe nunca voltou a dizer palavra, e havia pessoas que teimavam em dizer que ela também não cantava, que de sua boca não tornara a sair um único som.

— É mentira! — gritou Santiago, e levantou-se de um salto. Ouviu alguns resmungos mandando que ele se calasse. Os outros presos já estavam acostumados a ter pesadelos, mas na penumbra da cela não se atreveram a olhar para o recém-chegado. Ouviram o guarda dizer que ele fugira de casa com sangue no corpo, após ter esfaqueado a mãe.

...

Esse conto faz parte do livro "O resto de teu corpo no aquário" uma obra da escritora Tércia Montenegro, que nasceu e é residente de Fortaleza, já ganhou diversos premiações e ainda participou da Bienal Internacional do Livro em Fortaleza.

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